A
herança
O boi está triste. Sem sua madrinha,
sua presença, que enchia a cidade de São Luís, tornou-se discreta, quase
ausência. A tristeza do povo do Maranhão, que se tornou cotidiana, chegou a
suas bases culturais, que sempre foram forças de resistência e de identidade,
deste grito de alma que é em todo o Brasil o carnaval e aqui se expressa com
toda a força nas festas juninas.
Essas
tradições são bem brasileiras, por serem mestiças. Já falei muitas vezes da
herança açoriana, mas há também, e muito forte, heranças indígenas e africanas.
Os
Açores são ilhas perdidas – ou melhor, encontradas pelos portugueses em 1431,
na época do infante Dom Henrique – no meio do oceano, a 1.600 quilômetros de
Lisboa. Os portugueses se agarraram nelas, as cultivaram e plantaram. E criaram
gado bovino. Em algumas ilhas ainda se distingue perfeitamente as relheiras, os
sulcos gravados nas pedras pelos carros de boi através dos séculos.
O
grande poeta Vitorino Nemésio, nascido na Ilha Terceira, deixou muitos
registros de boi: “Fui criada com bezerros, / Costumadinha com bois: / O pior
foram as farpas / Que me vieram depois.” E diz que sua terra “cheira a lava e a
pelo de boi”.
Pois
bem. Essa gente, vinda do Minho ou do Algarve para as ilhas, teve sua hora de
partir também. Veio para Santa Catarina, para Pernambuco, para o Maranhão… e
levou sempre consigo a lembrança de sua origem. É um povo que, como dizia
Odylo, “põe flores na cabeça dos bois que vai vender e nomes de mulher nos
barcos em que vai morrer”. A nostalgia explodiu em cores, em dança, no auto do
engano.
Mas
teve uma forte contribuição, sobretudo entre nós, da prática antiga de
manifestar-se pela música e pela dança. Se não sabemos muito das culturas
indígenas que nossos antepassados portugueses destruíram, em sentido literal ou
figurado, sabemos muito das culturas africanas dos que foram escravizados, mas
não se deixaram destruir. E sua presença no bumba meu boi começa pela cor das
peles que formam esse contingente que se desloca, de um lado para o outro da
ilha – ou do interior do estado – dançando, tocando e cantando.
O
velho Nunes Pereira, um dos grandes antropólogos brasileiros, que conheceu bem
as duas culturas – a da Casa das Minas, por direito de nascença, a dos
amazônidas, pela dedicação de uma vida inteira – mostrou que a origem dessa
Casa, e, por consequência, do tambor de Mina e do tambor de crioula, está no
Daomé, e tem profundas diferenças das culturas nagô dominantes no resto do
Brasil.
Com
tanta herança cultural, com a coragem da resistência às piores adversidades, o
povo do Maranhão vai aguentando um e outro momento de dificuldade, e vai voltar
à alegria da festa.
Eh!
Boi bonito! Viva São João, viva São Pedro, viva São Marçal! Viva meu bumba meu
boi.
José
Sarney