DESAFINADO
Na vida aprende-se tudo. Ou quase tudo. Basta ter força de vontade e determinação.
Muitas coisas dependem um mínimo de inspiração. Pode-se ter 100% de transpiração que o aprendizado não vem junto. Música talvez seja uma delas.
Há pessoas em que o dote vem de berço, outras que se dedicam aos estudos durante toda uma vida, mas não conseguem se tornar bons profissionais. Mas não tenho dúvida de que sem um bom ouvido, uma boa memória, harmonia, ritmo e compasso, ninguém consegue se destacar no mundo musical.
Com a chegada dos Missionários do Sagrado Coração, no início do século passado, Pinheiro passou a viver tempos diferentes.
Com os padres, chegaram os trabalhos sociais, a educação moral e cívica ganhou uma outra dimensão e abriu-se uma perspectiva de futuro com educação e a formação dos jovens. Uma onda de esperança abriu-se na mente daqueles que tiveram a oportunidade de passar pelos bancos do Ginásio e, mais tarde, do Colégio Pinheirense.
Dentre os missionários, destacava-se um jovem encarregado de ministrar as disciplinas de desenho e canto orfeônico. Como sempre tive vocação para os desenhos e pintura, dentro de pouco tempo pude amealhar a simpatia do Frei José Preziosa ajudando-o a elaborar desenhos e cartazes da primeira olimpíada esportiva de Pinheiro.
As provas de basquetebol, espirobol, futebol de salão e volleybol, eram realizadas na quadra do Colégio Pinheirense, enquanto as de natação aconteciam na travessia da Faveira em frente ao porto do Brechó.
A praça da Prefeitura era o palco das pistas de atletismo com as provas de 100 e 200 metros rasos e com obstáculos, de salto triplo e salto em altura. O salto à vara, era um dos que atraiam mais público, talvez por conta da plasticidade do movimento, ou pelo fato de que utilizávamos uma vara de bambu que por muitas vezes partiam-se em pleno salto jogando por terra (literalmente) o sonho do atleta em conseguir a marca vencedora.
Em alguma série que não me recordo mais, iniciaram-se as aulas de música. Por mais que eu me esforçasse, por mais força de vontade que tivesse, não conseguiria tirar nota suficiente para passar de ano. E ser reprovado na disciplina de canto orfeônico, não fazia parte dos meus planos.
Lembro de um colega de turma, que repetia duas a três vezes a mesma série até conseguir passar de ano. Seu pai o chamou certa vez e deu-lhe uma bronca daquelas!
− Meu filho, só o estudo vai lhe fazer melhorar de vida! Você precisa ter mais força de vontade para estudar.
Ao que o filho respondeu:
− Força eu até tenho papai, o que me falta é a vontade.
Ao contrário dele, eu podia não ter tanta força assim, mas achava que tinha uma vontade enorme. O que não tinha, mesmo, era aptidão para a música.
A prova era dividida em duas partes. Uma prova escrita, de teoria onde estudávamos a obra e a vida dos grandes compositores (até hoje cerro os olhos e ouço o Tomaso Albinoni com seu adágio in G minor). Nesta eu tirava boas notas.
Mas tinha a outra, oral, onde nós devíamos ler as notas escritas nas partituras a partir do compasso marcado pelo frei José com sua batuta apontado para o quadro negro. Aulas de solfejo; um verdadeiro sofrimento para mim. Além das sete notas musicais, a que mais eu levava para casa era a nota zero.
O frei José, torcia o nariz ao me ver solfejando e dizia sempre, com aquele inconfundível sotaque italiano anasalado:
− Êila moço! Esse não tem jeito mesmo! Desafina até cuspindo...
Não fiquei reprovado porque acabamos por convencer o frei José a fazer a prova oral em dupla. Seria mais interessante cantar em duas vozes.. Eu, sempre fazendo a segunda ...
Meu melhor amigo Neco, filho de Mundico Melo, de ouvido muito afinado foi o meu parceiro e graças a ele não repeti de ano.
Só vim a curar o meu trauma anos depois graças a João Gilberto.
“Se você disser que eu desafino amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem ouvido igual ao seu, eu possuo apenas o que Deus me deu…”
Tivesse eu insistido um pouco mais, quem sabe!
Membro da Academia Pinheirense de Letras e
do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão
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