Por
José Sarney
A memória
não retém o momento, o clima, a emoção.
Hoje, 15
de março de 1985 é apenas uma data, fonte de tantos julgamentos e versões. O
tempo é uma invenção do homem, e as datas redondas nos seduzem a construir o
passado.
Na
história do Brasil tivemos momentos de grandes inflexões. Mas aquela data
será julgada no futuro como um instante em que a história se contorcia. Ela
marca o fim de um período marcado por revoluções, golpes de Estado, militarismo
– agregação de poder político ao poder militar – e instalação de uma democracia
de massa, que o país jamais conhecera.
Um Estado
Social de Direito, o exercício pleno da cidadania, das liberdades individuais e
dos direitos sociais.
Os que
vivem hoje jamais poderão avaliar o que estava em jogo naquela noite de 14 para
15 de março. A nove horas de tomar posse, o
abdômen de Tancredo Neves, presidente eleito, começava a ser aberto no Hospital
de Base de Brasília. Não se sabia que ali começava o seu martírio e a sua
agonia.
A
realidade imitava a ficção. O país atônito. Os políticos envoltos em
perplexidades não tinham nenhum grupo mobilizado. Reuniam-se improvisadamente
na Câmara e no Senado. Os jantares organizados para antecipação da festa se
transformavam em desorientação e tristeza. O ministro do Exército comunicava ao
chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, que iria voltar ao seu posto de comando e
desencadear uma ação para interromper o longo processo da transição.
No meio
de tudo isso, dois homens aparecem, mostram grande espírito público e
capacidade de gerir crises: Ulysses Guimarães e Leônidas Gonçalves.
Quando,
tomado de profunda emoção e saindo de uma depressão que escondi do país durante
vários meses, voltado totalmente para o problema humano de Tancredo, disse
a Ulysses que não desejava assumir sozinho, ele, rispidamente e mostrando sua
fibra de grande chefe, me disse: “Não é hora de sentimentalismos, Sarney. Temos
deveres com a nação. Um processo tão longo de luta pelas instituições não pode
morrer nas nossas indecisões”.
O general
Leônidas, já escolhido ministro do Exército, partiu para ações concretas:
“Vamos ao Leitão de Abreu, não para discutir a sucessão, mas para dizer que
amanhã, às 10 horas, o vice-presidente, conforme determina a Constituição, irá
prestar juramento perante o Congresso e assumir a Presidência até o restabelecimento
de Tancredo”.
E assim
fez, em companhia de Ulysses e dos senadores José Fragelli e Fernando Henrique
Cardoso. As mesas do Senado e da Câmara decidiram no mesmo sentido. O Supremo
Tribunal Federal, convocado secretamente pelo presidente Cordeiro Guerra,
deliberou que esse era o caminho da Constituição.
Quando me
comunicaram as conclusões, às três horas da manhã, eu era um homem batido pelo
imprevisto. Tomei posse “com os olhos de ontem” e enfrentei o
desconhecido dos anos que estavam à frente.
Passados 30
anos, o brasilianista Ronald Schneider, que estudou as transições democráticas,
diz que a do Brasil foi a mais exitosa.
Iniciou-se
a Nova República com o lema “Tudo pelo social”.
Enfrentei
12 mil greves, convoquei a Constituinte, implantamos uma democracia social,
rompemos com a ortodoxia econômica com o Plano Cruzado, alcançamos a mais baixa
taxa média de desemprego de nossa história –3,59%.
Até hoje
não se repetiu o crescimento econômico daqueles anos.
Relembro
nesta data Tancredo Neves. Afonso Arinos disse: “Muitos deram a vida pelo país,
mas Tancredo é o único que deu a sua morte pelo Brasil”.
Esta é a
história destes 30 anos de paz social, de alternância de poder e da presença do
proletariado nas decisões nacionais.
José Sarney, 84, membro da Academia
Brasileira de Letras, foi presidente da República (1985-1990)
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