A Constituição consagrou um princípio relativamente novo: o da ação afirmativa. De uma forma aparentemente contraditória, ele aparece inicialmente no art. 3º, ao colocar entre os objetivos fundamentais da República o “bem de todos”, sem “quaisquer formas de discriminação”. Ora, a leitura deste inciso deve ser vista com a ótica do enunciado de Rui Barbosa de que a igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais. No art. 4º nossa Carta repudia o racismo; no 5º, veda e pune a discriminação e o racismo (XLI e XLII), com “aplicação imediata”. Mais explicitamente, as ações afirmativas surgem no art. 7º, XX, ao proteger o mercado de trabalho da mulher; no art. 37, VIII, ao reservar vagas para pessoas portadoras de deficiência, e no art. 170, IX, ao favorecer as empresas de pequeno porte.
Foi nessa esteira que, em 1999, propus um projeto de lei estabelecendo cotas raciais. O problema da desigualdade sempre me preocupara, e minha amizade com Afonso Arinos reforçara minhas convicções. Assim, quando Presidente da República, consegui a aprovação da Lei 7853/89, que se tornou referência internacional no apoio às pessoas portadoras de deficiência, e criei a Fundação Palmares, dedicada à ascensão social da raça negra.
Eu acompanhara a evolução do problema nos EUA, desde a histórica decisão do Juiz Warren em 1954 e da luta de Luther King e Kennedy — criador da expressão “ação afirmativa” —, que resultou no Civil Rights Law de 1964, até os ganhos que as cotas haviam trazido no acesso à educação nos anos seguintes.
Meu projeto era simples, objetivo e amplo: “Art. 1º Fica estabelecida a quota mínima de 20% para a população negra no preenchimento das vagas relativas: I – aos concursos para a investidura em cargos e empregos públicos nos três níveis de governo; II – aos cursos de graduação de todas as instituições de educação superior do Território Nacional; III – aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). Parágrafo único. Na inscrição, o candidato declara enquadrar-se nas regras asseguradas na presente Lei.”
Para dar uma ideia de como minha iniciativa era oportuna, um dos grandes defensores da importância da educação para os negros, Frei David, do Educafro, ao apresentar o problema em seu site, diz que em 2000 a maior parte da comunidade era contra as cotas e que a ideia ganhou força a partir desta época. Quando minha proposta, aprovada no Senado, chegou à Câmara dos Deputados, um parecer disse que ela era inconstitucional.
O tempo me deu razão. A Lei nº 12.711/2012 criou as cotas para o ingresso nas universidades federais, estabelecendo que a reserva para negros seria proporcional à distribuição estadual da população. Depois a Lei 12.990/2014 estabeleceu a cota de 20% para os concursos públicos federais. Ao sancioná-la, a Presidente Dilma disse que, se tivesse conhecido o meu projeto, ela teria se referido a ele. Mas minha proposta era mais ampla, se estendia a todos os níveis de governo, no caso dos concursos, a todo o ensino superior, inclusive o privado, e ao acesso ao FIES.
Vejo agora que o Senado Federal deu uma interpretação restritiva ao acesso dos afrodescendentes em seu último concurso, considerando que os negros aprovados na classificação geral ocupariam as vagas da reserva de 20%. Minha história me dá autoridade para participar do debate que se criou. Para evitar esse tipo de erro meu texto falava em cota mínima de 20%, e a Lei 12.990 estabelece, em seu art. 3º, § 1º que “Os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para efeito do preenchimento das vagas reservadas.”
Insisto sobre a importância da inclusão dos descendentes das populações que foram vítimas do mais horrendo dos crimes e, apesar disso, tiveram um papel maior na nossa formação cultural. E acrescento que os 20% são um número muito modesto. Sendo os afrodescendentes a maior parte da população, ainda levaremos décadas para refletir essa percentagem no serviço público se não aumentarmos progressivamente este número, até os dias mais felizes em que as cotas não sejam necessárias.
José Sarney
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