O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesta quarta-feira que recursos da educação básica , a serem repassados a municípios a partir de uma decisão judicial para a qual não cabem mais recursos, não podem ser destinados ao pagamento de honorários de advogados. Por sete votos a um, a Primeira Seção do STJ entendeu que esse dinheiro do antigo Fundef – hoje Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb)– tem natureza constitucional e, portanto, não pode sofrer um desconto para que parte seja destinada a bancas de advocacia contratadas para destravar os recursos. A finalidade deve ser exclusivamente para educação básica.
O montante em discussão ultrapassa os R$ 90 bilhões, com repasses previstos para 3,8 mil municípios, em 19 estados. Em 2015, uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) na Justiça Federal em São Paulo, com pedido de repasse do dinheiro aos municípios, transitou em julgado, ou seja, chegou ao fim sem a possibilidade de novos recursos. Desde então, escritórios de advocacia vêm sendo contratados por prefeituras e recebem parte do dinheiro que, na visão do MPF, do Tribunal de Contas da União (TCU) e de outros órgãos de controle, deve ser destinado exclusivamente à educação básica.
– A educação é direito fundamental garantido pela Constituição. O Ministério Público trabalha para garantir acesso à educação e educação de qualidade. Para isso, os recursos públicos federais do Fundeb precisam ser integralmente aplicados na educação. O município e o estado não podem, por isso, usar o dinheiro do Fundeb para pagar honorários de advogado. Deverá usar dinheiro de outras fontes orçamentárias — disse a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, após a decisão do STJ.
Reportagens publicadas pelo GLOBO revelaram a pressão feita por escritórios de advocacia, grandes e pequenos, para abocanhar parte do dinheiro do Fundef destinado aos municípios via decisão judicial transitada em julgado. A ofensiva ganhou a oposição da procuradora-geral. Pelo menos desde maio, conforme registrado num parecer da procuradora-geral, Dodge aponta a iniciativa como “gravíssima situação” e defende que o MPF continue a empreender iniciativas para barrar contratações desses escritórios de advocacia por prefeituras país afora.
As bancas vêm sendo contratadas por municípios que têm direito a receber da União uma complementação do Fundeb. Os R$ 90 bilhões são uma diferença de ressarcimentos do governo federal no Fundef, o antecessor do Fundeb.
A ofensiva de escritórios de advocacia para representar as prefeituras e assegurar os repasses do Fundeb – convertidos em precatórios – se dá principalmente na região Nordeste. Os honorários cobrados são da ordem de 20% do total do dinheiro a ser depositado, o que significa que os escritórios tentam abocanhar um montante que pode chegar a R$ 18 bilhões. Em agosto, num evento na sede da Procuradoria Geral da República (PGR) para tratar do assunto, Dodge afirmou que esses honorários chegam a 30% em algumas cidades.
Em agosto de 2017, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que é inconstitucional destinar o dinheiro dos precatórios para pagamentos de honorários advocatícios. O dinheiro deve ser recolhido integralmente à conta do Fundeb, com utilização “exclusiva” em ações de educação básica, sob risco de “responsabilidade pessoal do gestor que deu causa ao desvio”.
Depois, no mês seguinte, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os recursos da complementação da União, no caso de quatro estados, devem estar vinculados a “ações de desenvolvimento e manutenção do ensino”. Em 7 de junho deste ano, uma decisão monocrática do ministro Edson Fachin, a respeito de um quinto estado, foi na mesma direção.
Há ainda recomendações do MPF em diversos estados contra a destinação do dinheiro a honorários advocatícios. Municípios nesses estados chegaram a efetivar a contratação de escritórios. O MPF também expediu orientações com aplicação geral, a partir de iniciativas de colegiados que funcionam no âmbito da PGR. Existem ainda posições contrárias da Advocacia Geral da União (AGU), do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União (CGU), de MPs e tribunais de contas locais.
Reportagem publicada pelo GLOBO em julho identificou que apenas três escritórios têm mais de 400 prefeituras em suas carteiras de clientes, a maioria deles na região Nordeste. Um único escritório, se conseguir garantir a continuidade dos contratos, pode receber mais de R$ 1 bilhão.
Em agosto, nova reportagem mostrou que o TCU deu início a uma ampla fiscalização sobre o destino de R$ 8,5 bilhões já efetivamente depositados nas contas de 329 municípios em 12 estados. O objetivo da auditoria é detectar se uma fatia expressiva desse montante – entre 20% e 30%, ou seja, entre R$ 1,7 bilhão e R$ 2,5 bilhões – acabou nas contas de escritórios de advocacia, a título de honorários pelo destravamento dos recursos.
Em junho, o TCU decidiu pela primeira vez instaurar tomadas de contas especiais para que escritórios de advocacia e ex-prefeitos devolvam aos cofres dos municípios o dinheiro do Fundef usado para pagamento de honorários. O caso envolve seis cidades do interior do Piauí. Três escritórios receberam R$ 18,2 milhões, e é este montante que o TCU quer que seja devolvido para ser gasto em educação básica. Advogados e ex-prefeitos foram chamados para dar explicação.
Neste caso específico, o tribunal listou nove irregularidades, entre elas dispensa de licitação para contratação dos escritórios, assinatura de contrato sem definição prévia dos preços, valores “exorbitantes” e “incompatíveis” com a complexidade da causa e pagamento de honorários com recursos dos precatórios do Fundef. Em agosto do ano passado, o TCU já havia detectado que um único escritório arregimentou mais de cem prefeituras no Maranhão e poderia faturar R$ 1,4 bilhão. Um acórdão na ocasião proibiu as contratações.
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